Ao passar sobre a ponte, notou que suas costas estavam
ensopadas de suor. Retirou a mochila, pô-la no chão, apoiando-a com os pés, e enxugou as gotas que escorriam na fronte, ao pé do canto direito do olho
esquerdo. Gotas salgadas, que, quando misturadas às lágrimas, ganham um sabor
salobro, agridoce. Dessas, sentiu amargo incomum. Suspirou, parou. Debruçou-se
sobre o parapeito do viaduto – era-o de fato, ainda que insistisse em chama-lo
ponte. À essa altura, retomou vagamente os sentidos. Deveria se apressar. Caso
contrário, perderia o Fazenda Grande das doze e meia; depois, só o Boca da Mata
via Estação de uma e dez. Esboçou um gesto de reconciliação com a consciência.
Estirando vagamente o tronco, com um agudo suspiro destoante da cadência
anterior, pôs as mãos na cintura. Quão pouco convicto foi o gesto, alcançou
apenas erguer as calças, arreadas de propósito, a meio mastro do rego; uso do
tempo. Não foi. Deixou-se estar, talvez convencido pela brisa que lhe soprara ao
pé da nuca e lhe levantara a gola da farda. Aí, o calor cedeu um pouco.
Destrocou as pernas cruzadas, fatigadas da paletada que dava, todo dia, da
Joana Angélica até o vale do Canela, e contemplou o fluxo de carros que subiam
a avenida em direção contrária. Olhou-os atentamente. Passava um Versalhes
prata, um Monza cor-de-pele, um Passat preto, vários outros a seguir, que não
os podia distinguir tal a velocidade que íam. Em comum, todos eles refletiam a
luz do sol sobre o capô e o teto, até passar sob a ponte, quando abruptamente
cortavam-na, deixando uma sensação estranha em seus olhos, como quando se
acende a luz do banheiro, de madrugada, após um pesadelo irreconciliado. Uma
vaga na barriga cortou-lhe as observações. Não tinha notado que já não reparava
na seqüência de automóveis e veículos que o cruzavam, sob a ponte. Não
percebeu, mas já tinha os beiços frouxos e levemente inclinados, curvados, que
lhe davam um feição de quem ri para dentro. Este desabrochar dos lábios durou
poucos segundos; voltou a cerrar a boca, de tal sorte, dessa vez, que lhe fez
ranger os dentes. A vaga persistia em suas entranhas. Não era fome, embora a
tivesse. Essa tinha um jeito diferente, como se se ancorasse no peito, fazendo
pesar o diafragma e tornar a respiração mais custosa. Sem saber porque,
todavia, sentia palpitar violentamente o coração no peito. Tornava a respirar
fundo para tentar lhe aplacar o ritmo. Não resultava; tossia, e aí novamente a
rudeza da ação o fazia novamente pôr-se à ordem do dia. Neste instante, viu um
pequeno grupo de adultos que cruzava a ponte do outro lado da via. Refreou o
ímpeto das divagações, concentrou-se fortemente em forjar uma distração aos
transeuntes que não causasse suspeitas das intenções que lhe pudessem julgar estar
contemplando. Agachou, apanhou uma pata-pata na mochila, escovou o couro, olhou
o relógio, dez para uma. Via as horas, sem sobressalto; não queria estragar o
disfarce. Os adultos passaram, sequer o notaram. Viu-os cruzarem a esquina,
depois da ponte. Julgou-se infantil, abaixou a cabeça, meneando-a ora para
cima, ora para o lado, mirando o ombro, como quem quer esconder o olhar de si
mesmo. Não podia esconder sua timidez nunca, nem para os outros, na rua. Sentiu
novamente fraquejar o pescoço. Sentiu-se prostrado, inerte. Não compreendia.
Ela fora embora sem lhe agradecer o enroladinho com kisuco que comprara na
cantina. Partira com Jefferson e Pablo; atravessara o pavilhão, entrara pelo corredor
do pátio e descera para o playground. A tudo isso, acompanhara com os olhos
marejados, e inquietos, porque não queria que lhe suspeitassem o sentimento e
indagassem o que fazia ali, paradão, criando raiz. Não o chamara para
acompanhá-la. Até quando aturá-lo-ia? Nesse momento, com um gesto de profundo
desgosto, sem poder reter o ímpeto, lançou a pata-pata viaduto abaixo, que
acabou atingindo o para-brisa de uma Santana branca que passava sob a ponte;
só teve tempo de notar o susto da motorista, recolher a bolsa e rumar ponto de
ônibus abaixo.