segunda-feira, 20 de dezembro de 2010

Mareiro


Tão logo singraram pela janela os primeiros raios solares do dia, Samuel apeou-se da cama e pôs-se de pé, ignorando decretos e portarias que aquele soninho matinal mais letárgico expede unilateralmente.
Talvez os tormentos da noite anterior lhe tivessem tolhido o gosto pelas colchas e lençóis e travesseiros; decerto é que estremecia a cada segundo que tais lembranças atravessavam-lhe a vista, tal era a frescura das memórias do evento. Tinha plano certo e cabia-lho pôr em prática. Eis quando o coração cega a razão e o indivíduo nega as controvérsias, que, por vezes, a despeito da resolução acolhida, seduz-te sorrateiramente ao covil dos ímpetos.
Meteu-se no carro e seguiu o itinerário que já sabia de cor. Cabe salientar que neste dia o sol era bonito e grande, o céu era azul e límpido e as folhas das árvores refletiam os raios solares que, regidas pelo Mareiro matinal, num compasso de semínima, balançavam-se de lá para cá como estrelas rutilantes; acredito que o sol não se queixaria desse bocadinho de luz desperdiçado efemeramente, se se pode imputá-lo como tal.
Samuel ignorava as belezas da natureza, embora ela se tivesse esforçando deveras para se fazer notar e espairecer-lhe as idéias. Mas o sofrimento e a desídia só lhe tornavam a vista para as imperfeições do sistema capitalista e à má gestão da máquina pública, representados, respectivamente, pela desigualdade social imperativa na cidade e a má conservação das vias públicas. Daí se pode concluir que a beleza só é bela ao espírito de quem lhe convém ser.
À medida que se ia aproximando do destino final, aos poucos e ao longe, podia avistar a janelinha que, em tantas outras oportunidades, serviu-lhe para ir acompanhando os passos da sua amada rumo ao ponto de ônibus, donde tomava a condução para a Universidade. Era obra casta e recôndita, dotada de dois quadrados de fibra de sílica industrializada, coberta com certo material para filtrar a luz solar e rodeada por azulejos quadrados verdes ainda menores que recobriam a fachada do prédio.
Enfim, chegara. Como num surto de intrepidez, fez límpida a mente das hesitações e traçou os primeiros movimentos em direção ao edifício. Ao cabo, empacou. Empacara diante da porta que por tantas vezes afrouxou-se-lhe as trancas, como o fluido escoado do seio materno, para que guiasse aos braços de Natália, esse era seu nome. Alguns anos mais velha do que Samuel, era pálida, um pouco alta e um tanto mais bela do que se supõe por fotografias. Tinha lábios carnudos e frescos, todavia discretos, dada a simetria dos traços. Os olhos eram duas esferazinhas levemente adocicadas com algum mel e doce de limão, profundos e expressivos, belos no talhe, ainda que estivesse ela absorta em preocupações a que freqüentemente se impunha - daquelas já exauridas mas das quais ainda se espreme um rédito de arrependimentos e conjecturas de coisas já ocorridas e findadas. Ora achava-os concentrados nalgum texto dos quais nunca se via livre, compromissos acadêmicos. Dizem que a medida do amor é diretamente proporcional ao tempo em que se consegue manter o olhar fixo ao da pessoa amada; Samuel e Natália não o puderam obter medida exata; embebiam-se dos amores recíprocos, ele ainda mais do que ela. De resto, era casta, prendada nas artes do crochê, um pouco dada às folias coletivas das amizades mais próximas e muito decidida de si; ao menos, era o que julgava. Se de todas as suas qualidades, o gosto humano, volúvel como só ele, ainda consegue lhes achar imperfeições, escapam-lhes as mãos; mãozinhas lindas como só elas, feitas à forma que se acha repartida em infinitos pedaços, tal é o alvitre de um tesouro raro.
Samuel viu-se então na situação que previra, mas preferira ignorar. Ponderara, então, as seguintes opções: a) dormia ela sono pesado, como já lhe conhecia os hábitos e, neste viés, não se aconselhava gritar ou telefonar; e b) ... Acabou quedando pela primeira.
Não se compreende pelos filósofos e os profissionais das ciências Humanas elucubradas o quanto pode um homem remoer uns pensamentos já pensados e repensados. Mirou-se neste diapasão nosso protagonista, e acabou sentado à escadaria que dava para o prédio.
Por alguns quartos de horas, senão horas, Samuel lá ficou. Tinha já tudo planejado. Pretextos, argumentos, réplicas, posturas, súplicas etc. Sentia que de lá não devia sair sem que se fizesse ser ouvido. Queria ao menos contemplar-lhe o rostinho, saborear alguma expressão de arrependimento. Pegou do telefone e ligou. Ao cabo de alguns toques, já não se lhe notava a cor dos lábios nem o vigor das pálpebras. Não atendera à chamada, Natália; esforço vão; mais do que isso, uma evidência dos rumos. Muitas teorias econômicas doutoram-se a partir de hipóteses baseadas em evidências não menos factíveis do que esta. E foi desta resolução que Samuel subscreveu a sua. Volveu oitava à direita e seguiu em marcha reta a pé firme em direção ao carro.
Ao longo da diligência, não pôde deixar de notar a praia que se achava a não mais que cinco metros de si. Reparou nos movimentos frenéticos das folhas dos coqueiros, no cheirinho fresco do Mareiro supracitado e nos mendigos desacreditados da vida. Olhou fundo o horizonte e lhe não achou sequer alguma embarcação ou vestígio qualquer de presença humana. Engoliu um pouco de solidão e frustração, recobrou algumas memórias doces ao lado de Natália; notou nas senhoras e nos senhorzinhos, atletas do dia-a-dia em suas sessões aeróbicas assíduas e sentiu o pesar de sempre lhe ter negado a companhia numa caminhada ao longo da orla.
Já com a chave na ignição do carro, como um sussurro ao pé do ouvido, sentiu estremecer a espinha, à proporção que reconhecia do antagonismo de realidades que havia testemunhado e sido vítima. Não restou ali cinco minutos, o sinal abriu e ele partiu.

Um comentário:

Aninha R. disse...

Meu queriiido JOrge!
Cada dia que passa, fico mais encantada com a forma que você escreeve!
Te adiminiro muuuito!
Muitos beeeijinhos!
;*