segunda-feira, 23 de julho de 2012

Tratado da Arte. Tomo I


A arte é a extensão da consciência humana para além do que suas necessidades básicas a levam.
Tem como propósito, ao mesmo tempo precípuo e secundário, fazer oposição ao eterno fastio que a vida produz-lhe.
Desde que se concebe a si mesmo enquanto criatura pensante – ou concebemo-no nós às criaturas passadas -, o Homem expressa-se através daquilo que chamamos Arte. Ainda que apenas para si mesmo, sem que nunca lhe desvendemos os propósitos ou intenções, como já se conhecem casos de hominídeos pré-históricos que rabiscavam e compunham sua arte em grutas onde a luz do sol não alcança, mesmo hoje.
Pois então, despida da ideia de que arte tem, como fim original, aquele social de que derivam a soberba, a vaidade e afins – sem embargo de críticas que me façam os fatos ignorados -, debrucemo-nos mais a fundo nesta estória.
Dado que somos dotados daquelas necessidades básicas de que não dispomos em qualquer hipótese, a despeito das evoluções que trazem consigo os séculos, pode-se dizer, com efeito, que a Natureza, compreendida em seu sentido mais abrangente, é cúmplice do labor artístico que lhe deitamos, seja nas cavidades de uma caverna estreita, ou num casco de um carvalho robusto.
Não digo isto à toa. Revelo-lhe agora. Peço-lhe que perdoe-me a prolixidade. Não sou bom de retóricas, nem de concisão dissertativa. Faço-o apenas para adaptar o papel às necessidades especiais de que careço. Enfim.
Admita que a Natureza fez-nos seres com dotes de máquinas, sem, contudo, desamparar-nos dos benefícios das emoções – careço deveras de poesia. Como máquinas, nutrimo-nos, despachamos detritos, produzimos hormônios, trocamos gametas, concebemos, desgastamo-nos, enfim, reciclamo-nos, sem que dêem ao livre arbítrio direito a réplica. Acerca desses aspectos, quero encerrar profundidade naqueles que fazem parte da nossa rotina diária, a saber, nutrição, evacuação e excreção, e sono.
Sabemos que temos necessidades brevíssimas, conforme conceituam especialistas da área, de alimentarmo-nos. Esse processo é justificado pela nossa deficiência em produzir energia de forma completamente autônoma. Predamos ou processamos vegetais e minerais para que o corpo opere de forma adequada. Em sociedades modernas, as refeições são quase todas coordenadamente planejadas e aguardadas, de sorte que se lhe despenda o mínimo de tempo, em regra. Na pré-história e em períodos vizinhos, as refeições eram esparsas e incertas, posto que também deficientes do ponto de vista nutricional. Sem muito lhe adentrar o mérito, pode-se inferir que, àquela altura, sobrava-se muito menos tempo á toa e à reflexões, sem embargo da menor expectativa de vida.
Ainda mais a fundo, consideremos que, uma vez satisfeitos a fome, o sono e a evacuação e a excreção, sobejam as horas mandriãs para os neurônios ensaiarem uma polca. Neste momento – dou uma colher de chá e deixo que os aspectos subjetivos dessa glosa mal composta adentrem -, o lócus cérulus e os alvéolos pulmonares, em harmonia com a mitocôndria, o complexo de golgi e o ciclo de Krebs, dão azo às emoções e o ser as exala:
se mata a lebre, celebra a ventura com uma dança efusiva e algaravia uma cantiga de felicidade; se o golpe é mal sucedido e a presa foge, resmunga e pragueja. Se a criatura animal fascina-lhe, dedica-lhe rabiscos em paredes de abrigos ; tira-lhe o coro e o traja á cabeça ou em forma de fraque ou tweel. Não se pode afirmar aqui que essas manifestações do tronco cerebral, em primeira instância, são artísticas. De forma alguma. Antes apenas interações entre o Homem e o meio, interjeições, expansões naturais que se nos dá institivamente. Mas é cá mesmo nestas interações que surge a Arte, entendida, para já, como expansão do espírito humano, e de todas as qualidades que lhe são inerentes, ao ambiente que lhe cerca, de si para si apenas.
Ao se espremer tal vegetal, extrai-se o vermelho oleoso; noutra, acha-se amarelo; as folhas de uma espécie lá estrambólica de árvore dão o verde. Teima e garimpa, mas falta-lhe o woad azul, o qual, encontrado, dá mais requinte à obra que, por ventura, compõe-se das citadas cores; até que o enfado lhe alcança e a pintura não o apetece mais. Vai à música: ao assovio, ao batuque, sem que atine aonde isto o levará, até que a fome ou o sono lhe arrebatam e ele retorna ao estado primitivo da subsistência. Eis o propósito original e eugênio da Arte humana.






  

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