A arte é a
extensão da consciência humana para além do que suas necessidades básicas a
levam.
Tem como
propósito, ao mesmo tempo precípuo e secundário, fazer oposição ao eterno
fastio que a vida produz-lhe.
Desde que se
concebe a si mesmo enquanto criatura pensante – ou concebemo-no nós às criaturas
passadas -, o Homem expressa-se através daquilo que chamamos Arte. Ainda que
apenas para si mesmo, sem que nunca lhe desvendemos os propósitos ou intenções,
como já se conhecem casos de hominídeos pré-históricos que rabiscavam e compunham
sua arte em grutas onde a luz do sol não alcança, mesmo hoje.
Pois então,
despida da ideia de que arte tem, como fim original, aquele social de que
derivam a soberba, a vaidade e afins – sem embargo de críticas que me façam os
fatos ignorados -, debrucemo-nos mais a fundo nesta estória.
Dado que
somos dotados daquelas necessidades básicas de que não dispomos em qualquer
hipótese, a despeito das evoluções que trazem consigo os séculos, pode-se
dizer, com efeito, que a Natureza, compreendida em seu sentido mais abrangente,
é cúmplice do labor artístico que lhe deitamos, seja nas cavidades de uma
caverna estreita, ou num casco de um carvalho robusto.
Não digo isto
à toa. Revelo-lhe agora. Peço-lhe que perdoe-me a prolixidade. Não sou bom de retóricas,
nem de concisão dissertativa. Faço-o apenas para adaptar o papel às
necessidades especiais de que careço. Enfim.
Admita que a
Natureza fez-nos seres com dotes de máquinas, sem, contudo, desamparar-nos dos
benefícios das emoções – careço deveras de poesia. Como máquinas, nutrimo-nos,
despachamos detritos, produzimos hormônios, trocamos gametas, concebemos, desgastamo-nos,
enfim, reciclamo-nos, sem que dêem ao livre arbítrio direito a réplica. Acerca
desses aspectos, quero encerrar profundidade naqueles que fazem parte da nossa rotina
diária, a saber, nutrição, evacuação e excreção, e sono.
Sabemos que
temos necessidades brevíssimas, conforme conceituam especialistas da área, de
alimentarmo-nos. Esse processo é justificado pela nossa deficiência em produzir
energia de forma completamente autônoma. Predamos ou processamos vegetais e
minerais para que o corpo opere de forma adequada. Em sociedades modernas, as
refeições são quase todas coordenadamente planejadas e aguardadas, de sorte que
se lhe despenda o mínimo de tempo, em regra. Na pré-história e em períodos
vizinhos, as refeições eram esparsas e incertas, posto que também deficientes
do ponto de vista nutricional. Sem muito lhe adentrar o mérito, pode-se inferir
que, àquela altura, sobrava-se muito menos tempo á toa e à reflexões, sem
embargo da menor expectativa de vida.
Ainda mais a
fundo, consideremos que, uma vez satisfeitos a fome, o sono e a evacuação e a
excreção, sobejam as horas mandriãs para os neurônios ensaiarem uma polca. Neste
momento – dou uma colher de chá e deixo que os aspectos subjetivos dessa glosa
mal composta adentrem -, o lócus cérulus
e os alvéolos pulmonares, em harmonia com a mitocôndria, o complexo de golgi e o ciclo de Krebs, dão azo às
emoções e o ser as exala:
se mata a
lebre, celebra a ventura com uma dança efusiva e algaravia uma
cantiga de felicidade; se o golpe é mal sucedido e a presa foge, resmunga e pragueja. Se a criatura animal fascina-lhe, dedica-lhe rabiscos em paredes
de abrigos ; tira-lhe o coro e o traja á cabeça ou em forma de fraque ou tweel. Não se pode afirmar aqui que
essas manifestações do tronco cerebral, em primeira instância, são artísticas.
De forma alguma. Antes apenas interações entre o Homem e o meio, interjeições, expansões naturais que se nos dá institivamente. Mas é cá mesmo
nestas interações que surge a Arte, entendida, para já, como expansão do espírito
humano, e de todas as qualidades que lhe são inerentes, ao ambiente que lhe
cerca, de si para si apenas.
Ao se
espremer tal vegetal, extrai-se o vermelho oleoso; noutra, acha-se amarelo; as
folhas de uma espécie lá estrambólica de árvore dão o verde. Teima e garimpa,
mas falta-lhe o woad azul, o qual, encontrado, dá mais requinte à obra que, por
ventura, compõe-se das citadas cores; até que o enfado lhe alcança e a pintura
não o apetece mais. Vai à música: ao assovio, ao batuque, sem que atine aonde
isto o levará, até que a fome ou o sono lhe arrebatam e ele retorna ao estado
primitivo da subsistência. Eis o propósito original e eugênio da Arte humana.
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