quinta-feira, 21 de julho de 2022

 


Ao passar sobre a ponte, notou que suas costas estavam ensopadas de suor. Retirou a mochila, pô-la no chão, apoiando-a com os pés, e enxugou as gotas que escorriam na fronte, ao pé do canto direito do olho esquerdo. Gotas salgadas, que, quando misturadas às lágrimas, ganham um sabor salobro, agridoce. Dessas, sentiu amargo incomum. Suspirou, parou. Debruçou-se sobre o parapeito do viaduto – era-o de fato, ainda que insistisse em chama-lo ponte. À essa altura, retomou vagamente os sentidos. Deveria se apressar. Caso contrário, perderia o Fazenda Grande das doze e meia; depois, só o Boca da Mata via Estação de uma e dez. Esboçou um gesto de reconciliação com a consciência. Estirando vagamente o tronco, com um agudo suspiro destoante da cadência anterior, pôs as mãos na cintura. Quão pouco convicto foi o gesto, alcançou apenas erguer as calças, arreadas de propósito, a meio mastro do rego; uso do tempo. Não foi. Deixou-se estar, talvez convencido pela brisa que lhe soprara ao pé da nuca e lhe levantara a gola da farda. Aí, o calor cedeu um pouco. Destrocou as pernas cruzadas, fatigadas da paletada que dava, todo dia, da Joana Angélica até o vale do Canela, e contemplou o fluxo de carros que subiam a avenida em direção contrária. Olhou-os atentamente. Passava um Versalhes prata, um Monza cor-de-pele, um Passat preto, vários outros a seguir, que não os podia distinguir tal a velocidade que íam. Em comum, todos eles refletiam a luz do sol sobre o capô e o teto, até passar sob a ponte, quando abruptamente cortavam-na, deixando uma sensação estranha em seus olhos, como quando se acende a luz do banheiro, de madrugada, após um pesadelo irreconciliado. Uma vaga na barriga cortou-lhe as observações. Não tinha notado que já não reparava na seqüência de automóveis e veículos que o cruzavam, sob a ponte. Não percebeu, mas já tinha os beiços frouxos e levemente inclinados, curvados, que lhe davam um feição de quem ri para dentro. Este desabrochar dos lábios durou poucos segundos; voltou a cerrar a boca, de tal sorte, dessa vez, que lhe fez ranger os dentes. A vaga persistia em suas entranhas. Não era fome, embora a tivesse. Essa tinha um jeito diferente, como se se ancorasse no peito, fazendo pesar o diafragma e tornar a respiração mais custosa. Sem saber porque, todavia, sentia palpitar violentamente o coração no peito. Tornava a respirar fundo para tentar lhe aplacar o ritmo. Não resultava; tossia, e aí novamente a rudeza da ação o fazia novamente pôr-se à ordem do dia. Neste instante, viu um pequeno grupo de adultos que cruzava a ponte do outro lado da via. Refreou o ímpeto das divagações, concentrou-se fortemente em forjar uma distração aos transeuntes que não causasse suspeitas das intenções que lhe pudessem julgar estar contemplando. Agachou, apanhou uma pata-pata na mochila, escovou o couro, olhou o relógio, dez para uma. Via as horas, sem sobressalto; não queria estragar o disfarce. Os adultos passaram, sequer o notaram. Viu-os cruzarem a esquina, depois da ponte. Julgou-se infantil, abaixou a cabeça, meneando-a ora para cima, ora para o lado, mirando o ombro, como quem quer esconder o olhar de si mesmo. Não podia esconder sua timidez nunca, nem para os outros, na rua. Sentiu novamente fraquejar o pescoço. Sentiu-se prostrado, inerte. Não compreendia. Ela fora embora sem lhe agradecer o enroladinho com kisuco que comprara na cantina. Partira com Jefferson e Pablo; atravessara o pavilhão, entrara pelo corredor do pátio e descera para o playground. A tudo isso, acompanhara com os olhos marejados, e inquietos, porque não queria que lhe suspeitassem o sentimento e indagassem o que fazia ali, paradão, criando raiz. Não o chamara para acompanhá-la. Até quando aturá-lo-ia? Nesse momento, com um gesto de profundo desgosto, sem poder reter o ímpeto, lançou a pata-pata viaduto abaixo, que acabou atingindo o para-brisa de uma Santana branca que passava sob a ponte; só teve tempo de notar o susto da motorista, recolher a bolsa e rumar ponto de ônibus abaixo.

 

 

  

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