domingo, 22 de junho de 2008

Ventos de outono


Sopravam os primeiros ventos mais frios do ano. Outono anunciava-se, e os mais frescos orvalhos daquela manhã escoavam às folhas da mangueira de São Coutinho da Ribeira. Não que seja relevante, em matéria cronológica, citar por que parcos destinos caminhava a humanidade, mas teimo em expô-los; sou prolixo, e o sou por pura casmurrice.

Era, então, fim de temporada no Brasil; pelo menos para as forças militares nacionais em expedição apaziguadora em Assunção; no parlamento, promulgava-se a lei de 28 de setembro, de fundamental relevância para a consecução da concretização da aquisição dos Direitos Inalienáveis do Homem pelos escravos negros, a saber, a propriedade privada, a liberdade etc; diziam-mo os ingleses. Paris rendia-se às coalizões proletárias para-militares socialistas e reduzia-se a um punhado de trincheiras mal guarnecidas da Comuna de 1871; enfim, os tempos andavam nos conformes.

Mas, ali, próximo à mangueira supracitada, Santiago e Guedes proseavam despretensiosamente sentados à cerca da fazenda Santa Maria do Oeste, destacada pelas volumosas safras periódicas de algodão, commodity responsável por 78% da receita de exportações da província de Pernambuco. Era dia de colheita, e eles entretiam-se a fazer ponderações acerca de temas diversos, tão difusos entre si que se dissipavam no espaço, assim como essas letras incoesas e ineptas perdem-se à ação inexorável do tempo e da latente imperícia lexical que me faz leigo delas. Cá, pois, recolhi um trecho dessa brincadeira, que, em minha opinião – Deus sabe! -, me foi mais interessante.

- (...) Toca-lhe à cintura. À medida que lhe vai percorrendo os braços, traz-lhe o corpo ao seu e sente-lhe o calor do cangote; encostem-se face a face, deleitem-se aos trastejos de vossas peles, cinjam-se às notas que lá tocam e a vós mesmos; à melindrosa harmonia que persegues.
Dada a devida consecução, deixa que o tempo mexa seus pauzinhos. Não há nada nesse mundo que se compare a tal regalo. Não concordas, primo?!

Santiago, ao mesmo tempo em que rompia com a imaginação da cena, meneava a cabeça positivamente, corroborando a autenticidade das idéias de Guedes, mesmo que nunca tivesse tido nenhuma experiência semelhante. Mantinha o olhar fixo, sedento por aquelas coisas novas de outrora tão incestuosas, que lhe faziam irromper um desejo voraz, quase inconsciente por mais informações, que, como se sabe, é outra commodity de grande valor no mercado.

Guedes, a parte de todo esse emaranhado de conjecturas que se fazia o primo, continuou seu discurso:

- A música que vos acompanha tem que ser deveras de bom alvitre. Mas, se me permite acrescentar, primo, ainda há mais que isso. Há mais quando tens la chica de costas a ti. Acomoda-lhe o bucho às espáduas, ao passo que lhe envolve tensamente à pélvis. Em pouco tempo, vossos braços, mãos, dedos estarão manietados numa só hera-de-inverno, tal qual as tranças de Rapunzel. Daí, põe-lhe o queixo ao ombro enquanto seu perfume entorpece-lhe. Que achas?

- Confesso-lhe que fiquei tentado, Déco, redargüiu Santiago, à medida que as formosuras de Anastácia iam-lhe dobrando a consciência e os sentidos. Dado o hiato no cotejo, entre ambos, do gosto no trato feminil, vislumbrou ele o momento que se veriam novamente. Que não tarde a noite, pensou consigo. Pensou naqueles olhos, ora castanhos, ora esverdeados, mas tão singelos e puros que lhe tolhiam toda e qualquer espécie de rancor e ressentimento; suspirou àqueles lábios pequeninos e discretos, mas tão doces e tenros como o fruto da querida e generosa mangueira que lhes proviam sombra e conforto (mas a isto só podia mesmo caminhar nos campos das ponderações); não se esqueceu daquele perfume, que, combinado às supracitadas qualidades da moça, sem exagero da expressão, era um feitiço; síncope que lhe tomava as faculdades mentais, posto que lhe trouxesse ânimo sem igual. Para tanto, levava sempre consigo um pedacinho daquele cheiro ao fraque de lã, que não ousava lavar e que não trocava há dias. Amostra essa que foi colhida a muito custo, haja vista que lhe foram necessárias burocráticas conjecturas, até que um surto de intrepidez desponta-se-lhe a parcimônia, ditadora de longas datas, o ímpeto lhe tomasse as pernas e destronasse a hesitação letárgica na qual estava imerso, fazendo-o cumprimentar a filha do coronel Firmino Fernandes de Albuquerque - senhor de um mundo de terras no interior pernambucano - naquela festa que dera este, em anúncio à grande safra que estava por vir.

Não sabia se todo esse embaraço sentimental era obra daquele perfume. Argüia-se se o que sentia era mesmo o que sentia, a despeito do teor entorpecente do mesmo, muito embora não estivesse tão interessado em desvendar esse feitiço; orçarva pelo irracional que lhe cingia o juízo àquele cheiro. Ademais, Guedes não o havia citado à toa; imputou leviandade do primo, que já devia suspeitar do seu desejo pela Anastácia, mesmo nunca a tendo mencionado à sua presença. Concluiu, todavia, que era mera coincidência.

Desta vez, Guedes não pôde ignorar a contemplação astronômica que Santiago fazia daquela noite de céu estrelado, que já sucumbia aos primeiros raios solares; estes timidamente iam ocupando seus devidos acentos.

- A que galáxia tu estás, primo? Aposto que estavas a pensar na filha do coronel, engatilhou Guedes.

- Sim, confessou acanhadamente Santiago, esbanjando todo o pudor que tinha por aqueles pensamentos.

- Seja cauteloso. Mente feminina, há muito que não é relvado para qualquer um, quiçá para um pupilo das artes do cortejo como tu. E, como sabes, ela está de casamento marcado com Manuel Mendes Cordeiro, filho de Alfredo Mendes Cordeiro, dono da maior casa comissária de Recife, a Mendes Cordeiro S/A. Sugiro-lhe que não percas teu tempo; não há muito a ser feito.

Santiago sabia que Guedes não mentia; ao inverso, era pura verdade o que dissera. Não poderia tê-la, de jeito maneira. Não tinha muito que oferecer, senão todo o afago do seu abraço e o calor do seu fraque de lã, e tudo aquilo que guardava a custo de muita angústia embaixo da pele. Embora houvesse tanto a ser dito, estava decidido, sôfrego, mas decidido: não devia mais procurá-la; optaria pela prudência. Não cabia a ele fazê-la feliz. Destarte, poupar-lhe-ia o sofrimento da insistência de uma batalha desertada.

Santiago mal concluíra seu monólogo mental no qual baseara seu parecer final acerca das questões amorosas que lhe intumesciam os neurônios, quando de lá viam em comboio os escravos da fazenda, custodiados pelos capatazes do coronel, iniciar a colheita. Seria um longo dia.

Já então se podia avistar o Sol majestoso devolver a noite às sombras. Aos poucos, os músculos da testa contraíam-se-lhes em protesto aos raios solares que lhes afetavam a vista. Dava-se então, burocraticamente, continuidade ao protocolo dos dias.

4 comentários:

Tão disse...

Jorge!

hahaha! era minha mãe, sim! ela gosto do seu elogio.
escute o "fera ferida" não é meu é musica que ja existe.
mas o resto é tudo meu.

Tenho que passar mais vezes por aqui. perdoe a falta.

Abração.

Ah, eu lembro que quem me deu a primeira música de Sinatra (é bom!) preu ouvir foi você. I won't dance

Marcelo Mendonça disse...

"Puta que pariu!"

Foi o que eu disse, em voz mental, ao pensar no trabalho que terei para elaborar meu próximo texto, posto o nível a que este teu elevou (honrosamente) o blog.

Congratulações, até breve!

Anônimo disse...

haha
'baseado em fatos reais'

=D

Unknown disse...
Este comentário foi removido pelo autor.