terça-feira, 24 de agosto de 2010

Amoreira


Em Itaimbó, interior da Bahia, havia um vilarejo famoso pelo seu pé de amora. Alto, opulento e vistoso, era realmente de dar-se inveja às populações vizinhas. Ele chegara em hora oportuna. Deu-se um período longo de estiagem na região, mas o recebeu o povo não com tanto despeito ou desagrado algum que houvesse. Agradeceram à providência tamanha dádiva.
Tal qual o fruto proibido, não faltaram intrépidos vaqueiros a quem a anedota soasse como galhofa. Assentiu-lhes a tentação, deste caso puramente social, e estava consumado o pecado original.
A população humilde deleitava-se das voluptuosidades vistosas daquela angiosperma, e o pé de amora não se demorava a fazer brotar os primeiros frutos mais tenros e suculentos, cuja essência extraia-se quase que libidinosamente, a cada lambida que se davam nos beiços, no dedos etc.

O prazo que se deu a esta algazarra não fora contado, tampouco o foram as previsões acerca da sua produtividade. É o que se diz por ai quando a oferta excede a demanda... Não é o caso deste relato.

E o pé de amora não cabia em si de lepidez e euforia, a despeito das previsões menos otimistas. Emendava, a cada fruto gestado, um tanto de garbo e requinte que se lhe compunha a silhueta sem vulgaridade. Não obstante falta-se-lhe um coração humano e corre-se-lhe seiva-bruta pelas entranhas, julgava justa, líqüida e certa a emoção que sentia.

Correram-se os anos e o pé de amora tornara-se símbolo daquele recém emancipado município, de outrora vilarejo de acanhadas economias.
Espalhavam-se notícias pela proximidades e todos já conheciam das formosidades daquele vegetal.
Sem embargo do que se lhes proviam em épocas mais tranqüilas, houve quem já lhe rascunhasse uma oração ou uma cerimônia digna da sua importância; previam-se já as crias e as gerações futuras.
Não há registrado nos documentos da câmara legislativa que comprovem por quais razões ou métodos científicos, enfim; sabe-se apenas que se descobriu uma lástima imensurável: o pé de amora era estéril; não procriava, seus frutos eram inóquos e inférteis.
Talvez por mero desígnio do destino, ou capricho de Deus. Não se sabe ao certo. Sabe-se, porém, que não foi dada outra solução senão derrubar o nosso querido pé de amora.
Não pasme, estimada leitora. Há razão certa e demasiada justificável para tão grave sacrilégio. Revelo-lhe.
Damião Enésio, cientista contratado pela prefeitura, renomado internacionalmente, não se sabe com quais métodos ou recursos, desenvolvera uma forma de reprodução assexuada derivada de embriões de espécies híbridas de pés de amora mato-grossenses e agora poder-se-ia fazer gerar um novo pé de amora tão bonito e agradável como o nosso pé de amora. A beleza, fruto das sínteses sociais, expressão máxima da liberdade humana, sucumbe inerte às malhas de poliamida do interesse. Dissera ele, em frase célebre, cujas linhas foram gravadas na lápide que se encomendou simbolicamente ao eterno sepulcro do nosso protagonista: achei alguém para te substituir.
Ao nosso amigo, não sobrara nada senão o que já era decreto do prefeito:

DECRETO MUNICIPAL Nº 33.892, DE 02 DE JUNHO DE 2010

Dispõe sobre o remanejamento das toras provenientes da derrubada do pé-de-amora, para fins de alimentar a lareira da câmara municipal de Itaimbó.

(...)

Antônio Amaltéia, secretário da agricultura.



2 comentários:

Nuriko disse...

Definitivamente, nunca imaginei que uma planta pudesse ser descrita com tanta eloqüência. E pensar que toda esta "voluptuosidade angiospérmica" teria um fim tão pouco nobre.

Raisa Bastos y Rodrigues disse...

No dia que eu falar 'assim' de uma árvore, vou saber que cheguei lá.
...me tocou.