sábado, 12 de junho de 2010

Sábado de sol


Era um sábado de manhã; um sábado como outro qualquer, exceto pelo fato de eu o estar desfrutando em plena Engomadeira. A leitora mais perspicaz deve-se estar questionando o que há de tão atrativo no lugar e no período do dia supracitados. Explico-me. Não te aflijas.
É fundamental antes criar um contexto para este relato. Com efeito, trata-se este de mais um dentre tantos que ouvimos diariamente - os quais, embora sejam de hercúlea constatação e de improvável verosimilhança, entediam e entretêm-nos os ouvidos... por algum momento -, exceto pelo fato dele atender à requisição de uma grande amiguinha minha (não lhe revelo o nome, leitora assídua; dá processo hoje em dia).
Como dizia, sem mais delongas, eu estava lá fazendo pesquisa, mais formalmente coletando dados estatísticos por meio de entrevistas. Concedo um brinde àquela leitora mais atenta cuja imaginação aflorou lembranças antigas das primeiras aulas de geografia; daquela primeira sigla que a professora, abençoada por formas voluptuosas (gostosinha; pelo menos, no meu caso), fazia-lhe decorar a todo custo - inclusive do seu trabalho. Pois tu, leitora intrépida, acertastes se pensastes no IBGE.
Pois é. Em 24/11/08 assinava um contrato temporário de vínculo empregatício com o IBGE, regido pela Lei no 6.019, de 3 de janeiro de 1974. Iludido pela perspectiva de encontrar no serviço público uma comunidade celta romanizada, dei de cara com uma horda viking: ralei.
Meu pai dissera-me repetidas vezes: - Não se vá meter pelas “boca-quente... não vale a pena." Não lhe dei ouvidos: meti-me sem dó. Quisera-lhe eu provar ser digno de exercer uma atividade profissional remunerada como qualquer outro cidadão. Invoquei reminiscências de um passado mandrião, indolente e letárgico, e pronto; estava montado o arcabouço de idéias que iria fundamentar a tese de que eu deveria permanecer no IBGE.
Eis o contexto que me requestavam. Foi por isso que eu estava na Engomadeira em pleno sábado. Dado o pontapé inicial, darei prosseguimento à sucessão de fatos que fizeram daquele sábado incomum para uns e estupefaciente para outros tantos (a realidade é dialética e as idéias são deveras perecíveis...).
- Vai puxar a máquina, é? Vai puxar, é?
- Não, não! IBGE! Sou IBGE!

Para alguns, esse diálogo representa um simples intercâmbio de informações; uma abordagem amistosa acerca dos planos da vida alheia; uma charada ou espécie de mímica corpórea (quem nunca foi trapaceado em “Imagem e ação?); enfim, há diferentes pontos de vista de um fato e há tantas mais outras interpretações do acontecido - que o digam advogados e relativos.
Neste caso incomum, para a perplexidade da leitora mais inepta (que não é teu caso), o interlocutor do diálogo acima estava dirigindo de fato uma ameaça preventiva e amistosa ao receptor, que lhe fez questão de alertar das suas intenções pacíficas e da real motivação do gesto que provocou a presente contenda.
Agora venho, por meio deste, pedir-lhe consternadamente, leitora cativa, um pouco da tua boa vontade, a qual tem sido deveras generosa até o momento, enquanto me vem acompanhando nesse entrelaçar e embaraçar de linhas incoesas e desarmônicas. Deita tuas pálpebras sobre teus olhos, despacha teus antolhos no canapé e paulatinamente põe-te a devanear.
Dado o devido prosseguimento às instruções apresentadas, atente e imagine a seguinte cena: Uma comunidade urbana do século XXI ocupada por pessoas de baixa renda. As casas amontoam-se por dentre as demais, vizinhos compartilham um mesmo muro entre as propriedades, as grades põem-se nos locais mais criativos etc. Um agente de pesquisa e mapeamento do IBGE, num momento de euforia e frenesi absoluto (em público, nós pobres mortais evitamos a manifestação deliberada de emoções para evitar indagações de terceiros): completara suas tarefas. O caminho de saída: uma travessa, cuja via é razoavelmente inclinada, encontra-se livre de obstáculos. Equivocada constatação: um elemento caminha na direção oposta, avista o pesquisador que porta uma bolsa pequena onde há seus pertences. Num momento breve, o pesquisador alcança sua bolsa, trá-la ao alcance da sua mão esquerda, e, num movimento brusco, alça um handpad. Pelo menos, era esta sua intenção. Não o compreendera o elemento interlocutor e logo pôs-se-lhe a questionar o que dali sairia, enquanto manuseava o seu coldre. Momentos de tensão. O jovem pesquisador, aflito e inseguro do seu destino, ergue os braços ao céu e clama pelo deus IBGE - guardião das estatísticas helenas (e das nacionais também) -, que lhe poupe do mau que vê iminente. As preces são feitas. Parecem-lhe eficientes, enquanto avista o interlocutor curioso afastar-se inofensivamente.
É claro, casta leitora, que, em dois anos de prestação de serviços ao IBGE e ao povo brasileiro, houve revistas, molestações morais etc. Mas este relato é o mais marcante, em minha modesta opinião.

2 comentários:

Marcelo Mendonça disse...

Lembro-me de quando te recomendei, pelas primeiras vezes, que lêsse M. de Assis, e de como a resistência de praxe se manifestara sob forma de uma análise comparativa com algum outro autor(a) que não me ocorre agora. Era tarde. O estopim já incandescia.

Anônimo disse...

Já tá mm é na hora de você começar a escrever também.